Um dia me disseram "quando não souber o que falar, cale-se". Mas sempre fui teimosa e desobediente e dava mais ouvidos ao que as vísceras diziam do que aos conselhos de mamãe.
Então sempre que penso em escrever (falar com os dedos o que a boca não pode gritar) me deparo com a dificuldade do tema. Eu não sei escrever sobre o que está fora de mim, essa é a grande verdade. Li um texto de Caio Fernando Abreu hoje que dizia:
"Escuta aqui, cara, tua dor não me importa. Estou cagando montes pras tuas memórias, pras tuas culpas, pras tuas saudades. As pessoas estão enlouquecendo, sendo presas, indo para o exílio, morrendo de overdose e você fica aí pelos cantos choramingando o seu amor perdido. Foda-se o seu amor perdido. Foda-se esse rei-ego absoluto. Foda-se a sua dor pessoal, esse seu ovo mesquinho e fechado."
Me senti então um pouco Narciso debruçado sobre as próprias angústias sem sequer notar as terríveis tragédias do mundo.
Mas não sei escrever sobre o que está fora... a escrita salta de mim e, sendo assim, só pode vir de dentro prá fora. A técnica me falta, o mecanismo me falha, eu me arrebento as correntes e transbordo o que me transfigura.
Trago a tona todos os cliches e pieguisses que não se deve cometer na escrita. Pouco me importa.
Vem comigo uma felicidade boba e cruel de saber que o menino (na época de meninice) também se refugiava em meio aos livros, trancafiado na biblioteca quando a hora do recreio chegava. Temida hora do recreio com os moleques correndo, os olhares das meninas descobrindo-se mulheres, o cheiro da merenda entrando pelo nariz encardido de criança atentada. Nessa hora, enquanto todos se perdiam em meio as cordas, elásticos, bolas de capotão... o menino tambem sonhava com reinos encantados, sábios sabugos de milho e bonecas falantes. Talvez, enquanto eu me embrenhava nas águas claras da menina de nariz pequeno, ele estivesse encrencado com as aventuras de um outro menino de nome comum.
Mal sabia eu das semelhanças de outrora, tão encantada estava com os "meros devaneios tolos a me torturar".
A placa do carro da amiga berrava aos olhos o que o coração fazia calar há anos. Anos... é assustador pensar no tempo. Ele passa arrastado e vai levando as memórias todas... leva o amor e transforma ele nessa solidão fria e calculista que procura no outro a sua própria identidade.
Não consigo me atentar a forma do texto e as idéias se embaralham com a razão. Esqueço os pontos, as vírgulas, esqueço o travessão e os acentos todos. Despacho prá fora o que dentro já não cabe. As lembranças espremidas, o amor guardado, a declaração reprimida pelo medo de perder o que nunca teve.
Uma pequena caixa reune o que a memória guarda, desde o primeiro encontro (que não se pode chamar encontro, mas o início da série de coincidências que varia de uma troca de telefones a um parentesco inusitado - seria melhor chamar de acontecimento [?]). Um hibisco seco colhido em frente a pizzaria que já não mais existe (prova do tempo que vai apavorado e a gente nem vê), guardado junto ao embrulho laminado que um dia guardou as músicas do Mawaca. Conheci naquele dia, uma tarde costumeiramente acinzentada, de braços dados na Paulista. Tinha medo da cidade grande, tal qual bixo do mato, e eu... eu varava noite pela Augusta, conhecia cada viela, amanhecia na Vila Madalena, sem sequer lembrar que um dia viera do interior. Eramos diferentes nas nossas semelhanças. Tão parecidos na inconstância.
Foi embora assim que o amor despertou... e também todas as outras vezes. Ia embora sempre. Se esquivava do apego, do afago, do que o prendia ao outro. Eu, menina de coração afoito, seguia o rumo por direções contrárias tentando achar a parte da minha estrada no caminho dele. Ou o contrário. Nunca sabia ao certo se fugia ou corria ao encontro. Demorei tempo para entender que não queria esquecer e nem abdicar. Vivi as paixões derradeiras... todas... os amores definitivos... as trocas de olhares com olhos alheios aos dele. Besteira ou desespero. Passou como se passa tudo nessa vida. Ele ficou. Ele sempre ficava. Podia por vezes desaparecer... ia embora... partia sem olhar prá trás... mas sempre voltava. Nunca deixou de voltar... não alimentava mas também não desprezava o amor que lhe oferecia. Certa vez até permitiu-se ceder um afeto. Pão de queijo e café; teatro; subir a Augusta a pé; quase cair tentando levantar; pic nic na sala; outra vez despedida. Onibus da VB. Indas e vindas até partir novamente.
Foi viver em bonita ilha, ver mar azul e céu limpinho.
E eu fiquei construindo barquinhos, escrevendo em siglas, jogando mais uma partida sozinha, amando sem nada esperar. Feliz por ter saudade bonita e sentimento sublime.
A gente não precisa escrever clichés quando vive em um.
A minha dor não me pesa porque a alma transborda